Significado de Devaneio: 1. Estado de espírito de quem se deixa levar por lembranças, sonhos e imagens; 2. Quimeras, fantasias, ficções.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

O ramo roubado


Pela noite entraremos
para roubarum ramo florido.
Passaremos o muro,
nas trevas do jardim alheio,
duas sombras na sombra.
Ainda não se foi o inverno,
e a macieira aparece
convertida, de súbito,
em cascata de estrelas perfumadas.
Pela noite entraremos
até chegar ao firmamento trêmulo,
e tuas mãos pequenas com as minhas
roubarão as estrelas.
E sigilosamente,
à nossa casa,
pela noite e na sombra,
entrará com teus passos
o silencioso passo do perfume
e com pés estrelados
o corpo claro desta primavera.

(Pablo Neruda)

segunda-feira, 28 de junho de 2010


O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores.
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

Alberto Caeiro (Heterônimo)

domingo, 27 de junho de 2010


Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

EUGÉNIO DE ANDRADE

"A saudade é um morcego cego
que falhou o fruto e mordeu a noite."

MIA COUTO

" Os amantes e os loucos são de cérebro tão efervescente;
neles a fantasia é tão criadora que enxergam o que o frio
entendimento jamais pode entender.
O namorado, o lunático e o poeta são compostos só de imaginação."

SHAKESPEARE

terça-feira, 22 de junho de 2010

O menino que carregava água na peneira


Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

o menino fazia prodígos.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos. (Manoel de Barros)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Canção do ver

Por viver muitos anos
dentro do mato
Moda ave
O menino pegou
um olhar de pássaro -
Contraiu visão fontana.
Por forma que ele enxergava
as coisas
Por igual
como os pássaros enxergam.
As coisas todas inominadas.
Água não era ainda a palavra água.
Pedra não era ainda a palavra pedra. E tal.
As palavras eram livres de gramáticas e
Podiam ficar em qualquer posição.
Por forma que o menino podia inaugurar.
Podia dar as pedras costumes de flor.
Podia dar ao canto formato de sol.
E, se quisesse caber em um abelha, era só abrir a palavra abelha
e entrar dentro dela.
Como se fosse infância da língua.(Manoel de Barros)

O viajante está feliz.

Nunca na vida teve tão pouca pressa.

Senta-se na beira de um destes túmulos, afaga com as pontas dos dedos

a superfície da água, tão fria e tão viva, e, por um momento,

acredita que vai decifrar todos os segredos do mundo.

É uma ilusão que o assalta de longe em longe, não lho levem a mal.(Saramago)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A Lucidez Perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.
Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade
- essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.(Clarice Lispector)

Deitada na grama,

o céu empoeirado de estrelas.

Passei o dedo e - curioso –

algumas vieram grudadas na ponta.

Olhei para cima e assoprei.

Foi tanta estrela caindo

que agora eu mal consigo enxergar

de tanta esperança.(Rita Apoena)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Já que não podemos extrair beleza da vida,
busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair
beleza da vida. Façamos de nossa falência uma vitória,
uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e
aquiescência espiritual. Se a vida não nos deu mais do que
uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que
mais não seja, com a sombra de nossos sonhos, desenho
se cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a
exterioridade parada dos muros.(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Dormi gostoso no jardim
esticada numa folha fresquinha
senti uma caricia no meu rosto
só podia ser a doce joaninha

Estava com carinha espantada
vendo-me alí toda preguiçosa
expliquei que não tinha resistido
vendo aquela rama tão viçosa

No ar o aroma da dama da noite
brisa chegando para embalar
meu corpinho foi se entregando
fiquei preparada para sonhar

Continuamos deitadinhas por alí
sentindo o calor da natureza
ela nos abraçava tão carinhosa
embaladas no berço da pureza(SoninhaBB)

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Apanha uma estrela cadente
e guarda-a em seu bolso
Nunca deixe-a desaparecer
Guarde-a para um dia chuvoso.(Christine Day Lorico)

quarta-feira, 2 de junho de 2010


O que é preciso é não ir demais contra a onda.

Isso é uma forma de lutar: esperar, ter

paciência, perdoar, amar os outros.

E cada dia aperfeiçoar o dia.(Clarice Lispector)

... seja alguém simples. seja algo que você ama

e entende. esqueça o resto, tudo que você

precisa está na sua alma...e

em seu coração.(Caio Fernando Abreu)
...quando você acordar, pergunte ao vento,
à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo que flui, a tudo que geme,
a tudo que gira, a tudo que canta,
a tudo que fala, pergunte que horas são;
e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro,
o relógio responderão...(Charles Baudelaire)

"É preciso não esquecer nada:

nem a torneira aberta nem o fogo aceso,

nem o sorriso para os infelizes

nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta

nem o céu de sempre.(Cecília Meireles)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Delírio

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
- Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
- Mais abaixo, meu bem! - num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
- Mais abaixo, meu bem! - disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...(Olavo Bilac)

...um lugar para sentar...
...uma casinha de passarinho vazia que me olha...
...gostosa voz, restaura a vida, a magia verde, enche os potes...
...uma tentativa de ver dentro, pulei e vi, nada dentro...
...cheia de vazio sombreado, tudo ali era de um imane oco, e me olhava...
...duas orquídeas que se abrem sob o passar do dia...
...a água leva o cheiro das cores das orquídeas, a terra agradece...
...uns selene espiar anuviados, de cinza escuro sorridente...
...”-também queres ver elas florirem, né Selene??”...
...alguns ensaios de chuva, terra molhada sob os pés descalços...
...o cheiro das cores na terra me admite, me entra, por osmose mesmo...
...brota em mim o gosto do cheiro do florir das orquídeas ...
...um abraço as coisas acontecentes, já que as sinto...
...um momento capaz de ser sentido,a cada instante,
Visto como a oportunidade de poder sentir algo...
...deixe ver, algo sempre vale alguma coisa, mesmo que nada...
...é sim, há casinhas de passarinhos vazias...
...mas há casinhas de passarinhos vazias, que te olham...

Boas e bobas

são as coisas que penso,

quando penso em você.(Caio Fernando Abreu)
A cada manhã, exijo ao menos
a expectativa de uma surpresa.
Que ela aconteça ou não.
Expectativa por si só,
já é um entusiasmo.
Que eu nunca aceite a idéia,
de que a maturidade
exige um certo conformismo.
Que eu não tenha medo nem vergonha
de ainda desejar...

(Martha Medeiros)