Significado de Devaneio: 1. Estado de espírito de quem se deixa levar por lembranças, sonhos e imagens; 2. Quimeras, fantasias, ficções.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011


"A aproximação do que quer que seja se faz gradualmente e penosamente
- atravessando inclusive o oposto daquilo a que se vai aproximar."


Clarice Lispector

Nossa ignorância comum

Imagem: Willian A. R. Ferreira
"O Poluidor de ideias"
Quanto mais aprendemos sobre o mundo, quanto mais profundo o nosso conhecimento, mais específico, consistente e articulado será o nosso conhecimento do que ignoramos - o conhecimento da nossa ignorância. Essa, com efeito, é a principal fonte da nossa ignorância: o facto de que o nosso conhecimento só pode ser finito, mas a nossa ignorância deve necessariamente ser infinita. (...) Vale a pena lembrar que, embora haja uma vasta diferença entre nós no que diz respeito aos fragmentos que conhecemos, somos todos iguais no infinito da nossa ignorância.

(Karl Popper, in 'As Origens do Conhecimento e da Ignorância')

... fora do lugar em mim...


"... sabia que tinha alguma coisa fora do lugar em mim.
Eu era uma soma de todos os erros: bebia, era preguiçoso,
não tinha um Deus, ideias, ideais, nem me preocupava com política.
Eu estava ancorado no nada, uma espécie de não-ser.
E aceitava isso. Eu estava longe de ser uma pessoa interessante.
Não queria ser uma pessoa interessante, dava muito trabalho.
Eu queria mesmo um espaço sossegado e obscuro pra viver a minha solidão.
Por outro lado, de porre, eu abria o berreiro, pirava, queria tudo
e não conseguia nada.
Um tipo de comportamento não se casava com o outro.
Pouco me importava."

Charles Bukowski

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Quem somos?


Quem somos, senão o que imperfeitamente
sabemos de um passado de vultos
mal recortados na neblina opaca,
imprecisos rostos mentidos nas páginas
antigas de tomos cujas palavras

não são, de certo, as proferidas,
ou reproduzem sequer actos e gestos
cometidos. Ergue-se a lâmina:
metal e terra conhecem o sangue
em fronteiras e destinos pouco

a pouco corrigidos na memória
indecifrável das areias.
A lápide, que nomeia, não descreve
e a história que o historia,
eco vário e distorcido, é já

diversa e a si própria se entretece
na mortalha de conjecturados perfis.
Amanhã seremos outros. Por ora
nada somos senão o imperfeito
limbo da legenda que seremos.

Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

É no isolamento

Efetivamente não somos e não pretendemos ser sociedades de insetos, sociedades do alarido, da agitação frenética, do barulho caótico das gentes, onde, o eu morre de nós. Não, é preciso a oportuna desconexão; o futuro pertence às ordens contemplativas. E o que nos salvará serão as novas formas de recolhimento que associem solitários e solidários. É no isolamento, no silêncio, que o homem pode encontrar a "verdade", ou o insight fértil: saído como um desvio da regularidade.


Michel Serres

" Existe uma criatura perfeitamente inofensiva;
quando ela passa diante dos seus olhos, você mal
a percebe e imediatamente volta a esquecê-la.
Mas assim que ela de algum modo, invisivelmente,
chega aos seus ouvidos, começa a se expandir, eclode,
e conhecem-se casos em que ela penetrou no
cérebro e floresceu ali devastadoramente,
como os pneumococos em cães,
que penetram através do focinho...
Essa criatura é o Seu Próximo."

Rainer Maria Rilke

"O bom diário é aquele que se escreve para si apenas
ou para uma posteridade tão distante que pode sem risco
ouvir qualquer segredo e corretamente avaliar cada motivo.
Para esse público não há necessidade de afetação ou restrição."

Virginia Woolf

A vida é um Milagre...

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
Bendita a morte,
que é o fim de todos os milagres!

Manuel Bandeira

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Imagem - Remedios Varo(harmonia)

Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.(Manoel de Barros)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Novas Cores no Devaneio

Caríssimos Seres Devaniantes,

Temos cores novas em devaneio: Fernanda Mendes.

Tenho certeza que todos vão gostar dos escritos de Fernanda,
assim como suas escolhas poéticas.

Duvide, critique e sugira!

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Amor e Seu Tempo


Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prémio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe.

Valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.

Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco'

O amor é o amor


O amor é o amor — e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos — somos um? somos dois?
espírito e calor!

O amor é o amor — e depois?

Alexandre O'Neill, in 'Abandono Vigiado'

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Mia Couto

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011


"Ora veja… é o que sempre acontece às pessoas românticas:
enfeitam uma criatura, até o último momento, com penas de
pavão, e não querem ver, nela, senão o que é bom, muito
embora sentindo tudo ao contrário.
Jamais querem, antecipadamente, dar às coisas o seu devido nome.
Essa simples idéia lhes parece insuportável.
A verdade, repelem-na com todas as forças até o momento
em que aquela pessoa, engalamada por elas próprias,
lhes mete um murro na cara.”

Fiódor Dostoiévski

"O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois
desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem"

Guimarães Rosa

A vulgar que passou


Não eras para os meus sonhos, não eras para a minha vida,
nem para os meus cansaços perfumados de rosas,
nem para a impotência da minha raiva suicida,
não eras a bela e doce, a bela e dolorosa.

Não eras para os meus sonhos, não eras para os meus cantos,
não eras para o prestígio dos meus amargos prantos,
não eras para a minha vida nem para a minha dor,
não eras o fugitivo de todos os meus encantos.
Não merecias nada. Nem o meu áspero desencanto
nem sequer o lume que pressentiu o Amor.

Bem feito, é muito bem feito que tenhas passado em vão
que a minha vida não se tenha submetido ao teu olhar,
que aos antigos prantos se não tenha juntado
a amargura dolente de um estéril chorar.

Tu eras para o imbecil que te quisesse um pouco.
(Oh! meus sonhos doces, oh meus sonhos loucos!)
Tu eras para um imbecil, para um qualquer
que não tivesse nada dos meus sonhos, nada,
mas que te daria o prazer animal
o curto e bruto gozo do espasmo final.

Não eras para os meus sonhos, não eras para a minha vida
nem para os meus quebrantos nem para a minha dor,
não eras para os prantos das minhas duras feridas,
não eras para os meus braços, nem para a minha canção.

Pablo Neruda, in 'Cadernos de Temuco'
Tradução de Albano Martins

Corpo de Mulher

Corpo de mulher, brancas colinas, coxas
                                                 [brancas,
pareces-te com o mundo na tua atitude de
                                                 [entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.

Fui só como um túnel. De mim fugiam os
                                                   [pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão
                                                    [poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra
na minha funda.

Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e
                                             [triste!

Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu
                                                                [caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.

Pablo Neruda, in "Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada"